segunda-feira, 6 de abril de 2020

O Amor que vence o medo



O Amor que vence o medo
João Manuel Silva, padre jesuíta

O mundo está diferente. Estamos todos metidos em casa, as lojas estão fechadas, os centros comerciais com as luzes apagadas. Embora as nossas ruas e cafés estejam vazios, nos hospitais o movimento e a ansiedade aumentam consideravelmente. E, claro, sentimo-nos angustiados, ansiosos, deprimidos com as nossas rotinas alteradas. Ficamos em casa para nos proteger – e principalmente para proteger os mais frágeis e os profissionais de saúde – de um vírus que ameaça levar o nosso sistema de saúde à rotura e, portanto, ameaça a vida de muitos de nós.
Há dias o Papa Francisco, diante da Praça de São Pedro vazia, lembrava-nos que “Deus faz resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas más”. O que nos está a acontecer é mau. É duro. É difícil. O mundo está a sofrer. E, como sempre, os mais frágeis são os primeiros a senti-lo na pele. Que bem pode Deus fazer resultar de tudo isto?
O sofrimento não é bom, nem é querido por Deus. Se nós, que somos imperfeitos no amor, não gostamos de provocar sofrimento aos que amamos, quanto mais o nosso Deus que é Amor poderia enviar-nos sofrimentos? Não acredito num Deus que nos manda sofrimentos “para nos pôr à prova”, como que um pai caprichoso que nos manda um flagelo, para que depois nos ponhamos em joelhos para lhe implorar que nos livre deste mal.

O sofrimento é um mistério, e Deus um mistério ainda maior. Mistério significa algo que o nosso conhecimento não consegue abarcar completamente. E, por isso, por muitas teorias que os filósofos e os cientistas elaborem para explicar o mal e o sofrimento – tal como aquele por que estamos neste momento a passar –, nunca vão encontrar uma resposta que realmente nos satisfaça.

Olhando para os relatos da Paixão de Jesus, parece-me que Deus não intervém para acabar com o vírus. Senão, porque não impediu Deus, desde logo, que o vírus existisse? Olhemos o relato da Paixão segundo São Mateus, que ouvimos neste Domingo de Ramos. Quando vêm prender Jesus, um discípulo saca da espada para o defender, e acabar ali mesmo o problema. Nesse momento, Jesus diz: “Julgas que não posso recorrer a meu Pai? Ele imediatamente me enviaria mais de doze legiões de anjos!” (Mt 26, 51-53). Já no deserto, o diabo havia tentado Jesus do mesmo modo: o resolver de forma mágica os problemas (cf. Mt 4, 6). Jesus não resolveu os problemas todos que afligem a humanidade, com a sua vinda ao mundo. É verdade que curou algumas pessoas, e reanimou Lázaro – mas, passado uns tempos, todos voltaram a morrer: o sofrimento voltou.

De facto, todos nós temos um desejo básico: o de que os problemas e o sofrimento desapareçam de forma imediata. Um desejo profundo de não termos que passar nem pela nossa própria morte nem pela daqueles que amamos. É um desejo básico ou natural – e à partida saudável – de preservarmos a vida. Por isso, estamos a empenhar-nos a viver esta quarentena, para preservarmos a vida dos mais frágeis e de quem cuida de nós.

Mas nós somos chamados, pela graça de Deus que nos foi dada no Batismo, e mais: a deixar com que aquilo que é natural e básico em nós, possa ser progressivamente transformado pelo sobre-natural. É isto que acontece no Batismo e em cada Sacramento: o natural une-se ao sobre-natural, sem que nenhum deles se perca. O humano, sem deixar de ser humano, passa a ser também templo do divino. O pão, sem deixar de ser pão, passa a ser também Corpo de Jesus. Foi isto que aconteceu na Páscoa: aquilo que era (e continua a ser natural) a morte, e o medo que ela nos causa, deixaram de ter a última palavra. A morte continua a existir. E continua a causar medo, repugnância, sofrimento, tristeza. (Estranho seria se não causasse!). Mas a vida, morte e ressurreição de Jesus – em que o humano se uniu ao divino, o natural se uniu ao sobre-natural – dizem-nos que nem o medo, nem o sofrimento, nem a morte são a última palavra e, por isso, não são eternos!
Mas, então, como viver a Páscoa atravessando este momento de sofrimento que estamos a viver? A nossa fé na Páscoa de Jesus pode dar-nos alguma luz, para entender a partir da Esperança, estes tempos. Podemos viver esta Páscoa de forma ‘natural’ a lembrar que, neste ano, por causa deste mal que estamos a viver, não pudemos aclamar Jesus a entrar em Jerusalém, com ramos, cantando “Bendito o que vem em nome do Senhor”. Que não houve procissões, nem lava-pés, nem Enterro do Senhor, nem acenderemos o lume novo. Que não andaremos de casa em casa a anunciar, com ‘Aleluías’ e foguetes, que o Senhor ressuscitou. Podemos ficar no túmulo, como as mulheres que choram, ou os discípulos fechados em casa, com medo.

Mas também podemos fazer com que esta Páscoa, apesar de literalmente fechados em casa, seja um momento único para entramos mais profundamente – a partir da nossa própria experiência de sofrimento – no mistério do Amor, pelo qual Jesus morreu na cruz e ressuscitou.

A ressurreição, na nossa vida, começa a mostrar os seus efeitos quando passamos a olhar a nossa própria vida e a realidade com os olhos de Deus. Deus dá-nos essa graça, se a quisermos acolher. A graça de ver com os olhos do Amor, capaz de ver o quadro todo, sem se ficar só pelo imediato. A graça de não vermos a vida por compartimentos, por gavetas, mas de sermos capazes de ver o fio que liga tudo, as alegrias e os sofrimentos, os dias bons e os dias maus. O fio que liga o natural ao sobre-natural. Olhando a vida desta forma, não nos deixaremos esmagar pelo medo, nem pelo sofrimento, nem sequer pela morte! Porque, se o absurdo total foi vencido por Deus – a morte – então o que nos poderá fazer desesperar?

Claro que o nosso olhar não é transformado de um dia para o outro, como que de uma forma mágica. Este é o caminho de toda uma vida, se o quisermos percorrer. Mas esta Páscoa pode adquirir um significado muito diferente e muito profundo se nos deixarmos olhar por Jesus que, suspenso na cruz por nosso amor, nos diz: eu já passei por tudo, mas estou vivo. Estou contigo, para te dar força. Ama, tal como eu te amei. O tal fio que liga o natural ao sobre-natural é o Amor, que é eterno. Portanto, o amor, a solidariedade, a atenção possível em tempos de isolamento, são o primeiro passo para nos dispormos ao milagre de passar da morte e do medo, à vida e à esperança. Para recebermos na nossa própria vida o grande milagre que é a Páscoa.

Que nesta manhã de Páscoa, ao exclamarmos “Cristo ressuscitou, Aleluia! Aleluia!”, possamos dizê-lo com uma fé renovada, de que a morte e o sofrimento não têm a última palavra, porque o Amor está connosco. E, portanto, partilhemo-lo uns com os outros, nas circunstâncias que nos é dado viver.

Uma boa Páscoa!



Nota: O Padre João Manuel fez parte dos Escuteiros de Nogueiró, ao qual muito agradecemos esta reflexão, Obrigado)






Sem comentários: